Papo Poeta

domingo, 27 de setembro de 2009

Falando com os olhos


Eu era estagiária do meu curso de Auxiliar de Enfermagem em 1994 e estava em um hospital de grande porte de minha cidade cumprindo meu estágio de Clínica Cirúrgica, lembro que ali nasceu minha paixão por cuidar de feridas, mas o que mais me marcou mesmo foi este episódio:


Eu estagiava de manhã e existiam algumas regrinhas que teríamos que seguir, uma delas era "Não comer na enfermaria!" mas um dia eu resolvi quebrar a regra, não havia tomado café e estava louca de fome, então entrei em uma enfermaria que não era a minha e tirei uma maçã para lanchar, quando passei por trás da porta onde ninguém me veria do corredor, meus olhos foram em cima de uma garotinha de seis anos com um curativo enorme na cabeça, um turbante na verdade, ela me olhava comer a maçã e ofereci para ela um pedaço, sem me dizer nada ela aceitou e sorriu para mim, disse a ela:


"Não diga para ninguém que eu estive aqui, será nosso segredo!" ela balançou a cabeça afirmando. E saí.


Mais tarde eu ouvi uns gritos de criança na enfermaria e fui atrás para ver o que era, quando me aproximei o som vinha da enfermaria da garotinha, cheguei na porta e vi o seu sofrimento, ela estava escalpelada! (ela havia caído do barco e uma hélice do barco em que ela estava arrancou todos os seus cabelos, levando seu couro cabeludo), fiquei estarrecida com aquela visão, ela olhou para mim tão penoso e eu saí de lá para não ver mais seu sofrimento.


No posto de enfermagem li sua história e vi o que era feito nos seus procedimentos, ela sentia dores horríveis quando faziam o curativo. Por se tratar de um procedimento grande, nós auxiliares não poderíamos fazer, mas eu lia toda a prescrição e a evolução do quadro, e continuava comendo minha maçã todos os dias com ela antes do procedimento.


Dias depois ouvi o comentário dos enfermeiros dizendo que chamariam o psicológo pois ela não falava com a equipe, e que o profissional teria que vir com uma roupa colorida por que ela recusava quem andava de branco, fiquei confusa e percebi então que nunca havia trocado uma palavra com ela, nossa conversa era com o olhar e gestos, de oferecer a maçã e ela aceitar.


O estágio acabou e passei para o outro lado do corredor do hospital a área de ortopedia, dois dias depois eu ouvi uma corridinha de criança e uns braços me abraçando pela cintura, era ela!


- Oi tia!!! por que você sumiu? não trouxe mais maçã para mim! olha o meu cabelo vai nascer de novo, não dói mais!!!


Eu olhava para aquela criaturinha tão sofrida e tão radiante com seus olhinhos brilhando e falando!

Peguei-a no colo e a levei de volta para a sua enfermaria, no caminho lhe disse:

- Titia mudou de lugar mas vai trazer maçã para você todos os dias, seu cabelo vai nascer lindo e comprido, que cor ele é?

- Preto! igual o seu.


Entreguei-a para a mãe que estava procurando-a, ela me agradeceu e me disse que sabia que nós duas conversavamos com o olhar, e que agora ela não tinha mais medo, a dor passou, ela voltou a falar e queria por queria encontrar a mulher de branco boazinha que trazia maçã para ela em vez de dor.


Às vezes temos tantas coisas para fazer que não nos damos conta que simples gestos até impensados mudam toda uma história na recuperação de alguém.


Jane Eyre -

Acadêmica de Enfermagem

Técnica de Enfermagem

Auxiliar de Enfermagem


Enfermagem com amor.

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